ESPAÇO URBANO DE FORMAÇÃO
DO LEITOR
Cristina Maria Rosa
Ieda Maria Kurtz de
Azevedo
Resumo: Tendo como foco a educação em um espaço
urbano relevante – a escola – e como escopo a produção de ambiência em sua biblioteca,
no artigo intencionamos realizar uma abordagem multidisciplinar, integrando o
olhar da educação, da antropologia e da arquitetura. Em 2016, a convite de uma instituição
pública que se localiza próxima de uma grande avenida em um bairro populoso da
cidade, inventamos um modo de ser: estudantes, pesquisadores, extensionistas. E
forjamos uma maneira de fazer universidade na sociedade: pesquisando,
intervindo, aprendendo. Em cinco ambientes que promovem um encontro prazeroso,
harmônico, arejado e espontâneo com o livro e a leitura, aprendemos a integrarmo-nos
no “pedaço”. As fontes teóricas e metodológicas que nos deram sustento estão
arroladas no texto. Os resultados alcançados integram as conclusões.
INTRODUÇÃO
Descrever
e avaliar o impacto que uma
intervenção educativa[1], antropológica[2] e
arquitetural em um espaço urbano[3]
importante – a biblioteca escolar – é motivo de alegria e, ao mesmo tempo, reflete
a seriedade com que tratamos o registro de um modo de ser e estar em grupo na
universidade e na sociedade.
Diante
da inexistência de espaço adequado à biblioteca em uma escola pública que se
localiza na periferia urbana da cidade de Pelotas, fomos desafiadas a
participar de um projeto de restauro e instalação, em um local de 100 metros
quadrados, de ambientes capazes de promover a harmonia entre os diferentes
públicos que a frequentam: crianças que estão aprendendo a ler, adolescentes
que precisam pesquisar e professores que buscam a biblioteca para preparar suas
aulas. Tendo como objetivo a disponibilização de um ambiente autogestionado,
investimos, entre abril e dezembro de 2016, no restauro (da rede elétrica, piso,
paredes e mobiliário), na setorização (recepção, pesquisa, auditório, leitura
silenciosa e leitura deleite) e na ambientação (cores, adereços, iluminação) do
local.
Percebemos,
logo que adentramos à instituição de ensino[4], que
a Biblioteca é o espaço mais importante na escola, especialmente por ser o
único partilhado por todos e, ao mesmo tempo, representar nossa cultura, sendo
fundamental para seu pleno uso, a setorização, iluminação, ambientação e aclimatação.
Apoiados
em pesquisas sobre a leitura, o livro e a literatura realizadas por
pesquisadores como Meireles (1951), Abramovich (1997), Campelo (2002),
Zilberman (2003) e Souza e Feba (2011), consideramos que o conhecimento de
diferenciados gêneros é fundamental na formação de qualquer criança,
especialmente quando observamos que parte das famílias não dispõe de
repertório, acervos ou hábitos que antecipem ou substituam as práticas escolares
de acesso e uso do livro. Além disso, nos cercamos de um estudo sobre os
documentos legais – leis, decretos, deliberações, publicações – que normatizam
a fundação, existência, manutenção e preservação de bibliotecas escolares no
Brasil. O intuito dessas duas atitudes – conceituar e regrar – foi criar um
escopo de argumentos para propor um projeto e defendê-lo socialmente.
A
metodologia empregada contou com uma abordagem multidisciplinar gerida pela
integração entre o olhar da Educação como fim último – promover a leitura –, o
da Arquitetura como meio – projetar e intervir em um espaço – e o da Antropologia
como questão de pesquisa – responder para quê e para quem a universidade realiza
extensão. Esta “abordagem multidisciplinar” resultou no registro de um modo
peculiar de ser e estar em grupo, uma vez que foi a “primeira vez” de todos os
integrantes da equipe: uma ousadia e um desafio representado em três linhas que
foram o projeto, o desempenho de funções no restauro do espaço e a pesquisa acadêmica.
Com relação ao projeto
(a utopia educativa), inventamos um modo de garantir a biblioteca tradicional
(local onde a escola armazena livros) e acrescentamos setores inexistentes,
mais compatíveis com a ideia de gostar de estar/gostar de ler. Ao restaurar o espaço,
projetamos ofertar aos usuários uma ética (uso autônomo de impressos) e uma estética
urbana, atual, através de ambientes que já existem na sociedade, mas que ainda
não são usuais na escola pública (local de leitura para crianças, recepção,
canto da leitura deleite). No desempenho das funções, ousamos um modo coletivo
de gerir uma obra: projetada dia-a-dia, distribuímos funções, avaliamos iniciativas,
mudamos rotas. Por fim, para garantir a pesquisa acadêmica, escolhemos dois
modos de registro: imagético (capturadas pelo celular, fotos de todos os
processos com intuito de marcar o antes/depois) e escrito (relato pessoal,
individual, diário, do ocorrido). O material acadêmico
resultante – arquivo imagético digital com aproximadamente duas mil imagens e memorial
descritivo do grupo[5]
tem sido fonte de aprendizados e futuros projetos e uma versão digital online
está sendo preparada.
Referencial
Na
busca por conceituar e definir o termo “biblioteca”, os dicionários são unânimes:
local que abriga uma “coleção de livros, pública ou privada, classificados
segundo algum critério, com o objetivo de conservá-los e de facilitar a
consulta e o estudo”.
A
partir de estudos que se fizeram urgentes quando adentramos a escola e conhecemos
o que nela havia destinado a livros, percebemos que uma biblioteca deve ser
mais do que um local de depósito e armazenamento de livros ou demais materiais
para serem consultados ou “levados por empréstimo”. Deve ser “um espaço
destinado a “políticas de leitura”. Mas, o que são políticas de leitura? As
entendemos como “um processo de acesso, uso, fruição e trocas relativas ao
artefato mais importante de nossa cultura escrita – o livro” (AZEVEDO, NUNES e
ROSA, 2016).
Desde
as marcas rupestres – tentativas de escrita, legado, pré-história da escrita –
o livro como artefato, produto da ação humana sobre a natureza e em relação com
os seus da espécie, é o formato mais acabado que temos de depositário de um
fragmento de passado e futuro ao mesmo tempo, que se presentifica a cada
abertura de páginas. Por isso, o espaço que o disponibiliza, a biblioteca, pode
e deve, na escola, ser um ambiente de acesso, convívio, troca e aprofundamento
de saberes. Um lugar que favoreça o deleite, o estudo, a troca de opiniões
sobre o livro e a leitura, sobre o conhecimento e relações interpessoais, de acordo
com a forma que é usada e tratada.
De
acordo com Pieruccini (2002), a biblioteca é um mecanismo “complexo,
constituído por elementos heterogêneos como a arquitetura e o ambiente, as
técnicas e tecnologias, os processos e produtos, as regras e regulamentos, os
conteúdos materiais e imateriais”, sendo responsável por ampliar sentidos aos
“significados por ela guardados” de crianças e jovens. Como instituição social,
a biblioteca possui “cinco pré-requisitos: a intencionalidade política e
social, o acervo e os meios para sua permanente renovação, o imperativo de
organização e sistematização, uma comunidade de usuários, efetivos e potenciais
e, por último, mas não menos importante, o local, o espaço físico onde se dará
o encontro entre os usuários e os serviços da biblioteca” (LEMOS, 2002).
Acreditando
que ler é “apreciar, inferir, antecipar, concluir, concordar, discordar,
perceber as diferentes possibilidades de uma mesma leitura, é estabelecer
relações entre diferentes experiências – inclusive de leitura” de acordo com
Pereira (2016), para quem ler é, antes de tudo, um direito. A leitura por
prazer deve ser incentivada, pois é consenso entre estudiosos que é ela que
abre caminho para as demais leituras.
Tendo
em vista que a escola está localizada na periferia urbana da cidade e que é
circundada por grupos sociais que acessam com menos frequência impressos de qualidade
literária, consideramos que ela deve ter um acervo múltiplo, atualizado e
representativo da cultura escrita, pois, a leitura de diferenciados gêneros é
fundamental na formação de qualquer leitor. Assim, acreditamos que cabe à
escola e aos professores mediar os processos de formação de novos leitores, de
conhecimento e deleite do que é literário, em seu local de convívio. A partir
dessa reflexão entendemos que a biblioteca escolar é uma peça chave para esse
processo, é um ambiente urbano da mais alta relevância, podendo ser foco
propagador do enlace com a leitura e tudo o que é literário, mas não só, entre
os impressos que a cultura escrita produziu.
Bibliotecas escolares: a lei
12.244/2010
É
no “Manual Pedagógico da Biblioteca Escolar - produzido pelo MEC em 2008 – que entramos
em contato com o pensamento vigente sobre o tema no Brasil. Ali, observa-se
que, para o Estado Brasileiro, é ideal que a escola tenha um espaço destinado
ao armazenamento de livros e outros suportes impressos, como uma biblioteca ou
uma sala de leitura e que, nela, os alunos possam vivenciar a experiência da
leitura. Consoante a essa determinação, o país criou uma lei (Lei Nº 12.244 de
24 de maio de 2010) que determina a existência, em toda instituição de ensino
do país, de bibliotecas.
De
acordo com o Manifesto pela Biblioteca Escolar da UNESCO (1999), um dos objetivos
da biblioteca escolar é “desenvolver e manter nas crianças o hábito e o prazer
da leitura e da aprendizagem, bem como o uso da biblioteca ao longo da vida”,
mas apesar da relevância pedagógica da biblioteca, de acordo com Neves (2010),
“esse ambiente escolar em geral tem sido desprezado pelas políticas públicas e
pelas práticas docentes”. Waldeck Carneiro da Silva aborda o tema em Miséria da
Biblioteca Escolar (1995), expondo a realidade das escolas brasileiras: “...
quando existe biblioteca, esses lugares não passam de depósitos de livros e de
outros objetos, com horários de funcionamento breves e irregulares, ou ainda
são convertidas em espaços de punição”. Ele observa que na maior parte delas,
os “atendentes são professores aposentados ou readaptados, enfadados da sala de
aula e de alunos” (SILVA 1995, p. 24-25). Sobre o mesmo tema, Neves é clara
quando considera que, em muitas escolas, as bibliotecas acabam “cumprindo mais
a função de depósito de livros e materiais do que de ambiente pedagógico para
informação, letramento e fruição” (NEVES, 2010)
Literatura Infantil: o início
Citado
por Castro (2008), Bakhtin (1992), afirma que a literatura infantil “é capaz de
transformar o indivíduo em um sujeito ativo, responsável pela sua
aprendizagem”. Machado (2001), por sua vez, afirma que apesar disso, as
crianças leem por obrigação, e não por gostar de fazê-lo.
Como
despertar o gosto? Ele pode ser ensinado? De acordo com Castro (2008), existem
dois fatores que podem intervir neste processo: curiosidade e exemplo. O
exemplo depende exclusivamente das pessoas que rodeiam esta criança, enquanto a
curiosidade pode ser despertada também pelo espaço. O gosto pela leitura é
construído a partir do desejo do leitor de encontrar a possibilidade de
interlocução com o mundo, de acordo com Menin, Souza e Jorge (2006). Em seu
artigo, no entanto, os autores consideram que os alunos “percebem a biblioteca
como um ambiente estranho – muitas vezes ameaçador – e vivem a possibilidade de
leitura em sua dimensão mais restrita” e indicam fatores que levam as crianças
a terem menos ou não terem contato com histórias da cultura popular e com
livros infantis.
A
partir da leitura desses diversos textos que tratam da existência, manutenção e
usos de espaços para a leitura na sociedade, compreendemos que tornar os
ambientes de leitura mais atrativos e acolhedores é uma grande estratégia para
cativar novos leitores. De acordo com Drumond et all (2000), a qualidade que um
espaço arquitetural possui está centrado na habitabilidade e esta é revelada
por quatro fenômenos existenciais: a territorialidade, a privacidade, a
identidade e a ambiência. No estudo, a ambiência “que pode ser entendida como
conforto, adequação, funcionalidade, beleza” capturou nosso interesse.
A
experiência de restauro de uma sala de aula e posterior invenção de uma
biblioteca desencadeada pelo GELL no ano de 2016, em uma escola pública[6]
localizada na periferia urbana da cidade contou com alguns pontos chave:
ü Diagnóstico;
ü Produção
de uma planta;
ü Execução;
ü Uso
adequado de espaços e acervos
O
grupo diretivo da escola, ao assumir a gestão após uma eleição disputada,
percebeu a inadequação – a falta de luminosidade, ventilação, espaço e
mobiliário – do espaço anteriormente destinado à biblioteca. Ela funcionava
precariamente em uma saleta de aproximadamente 30 metros quadrados no qual
havia uma mesa de centro com pilhas de livros em volta. No verão “era muito
quente e no inverno muito frio”, segundo a diretora. As janelas “bem altas” não
podiam ser abertas e “nem se poderia dizer que era uma biblioteca”, pois nela,
“ninguém tinha vontade de entrar”.
Ciente
da necessidade de uma mudança, a direção eleita decidiu realocar o acervo para
uma sala maior, que anteriormente, segundo alunos, era uma “sala de vídeo”,
usada eventualmente. A partir dessa decisão, começaram a prepará-la. Após a
pintura da sala, doada por uma empresa da cidade, a direção, sentindo a
necessidade de um conhecimento acadêmico para uma classificação, disposição e disponibilização
do acervo aos alunos, convidou o GELL – Grupo de Estudos em Leitura Literária
da FaE/UFPel, para que organizasse o espaço. Isso em março de 2016.
A
primeira visita do GELL à escola ocorreu no mês de abril de 2016. Na ocasião, o
grupo esperava “encontrar uma sala com armários e prateleiras repletos de
livros” (ROSA, 2016) que mereceriam ser classificados e realocados. No entanto,
desde o corredor de entrada – repleto de livros aguardando a arrumação,
empilhados no chão úmido, devido ao tempo chuvoso, emparedados com classe e
cadeiras quebradas e descartadas – a situação era caótica. Na sala, um entulho
de armários, cadeiras, móveis destruídos e inservíveis haviam sido agrupados no
centro, para que as paredes fossem pintadas. O relato da primeira impressão de
uma das bolsistas do projeto, ao ver o trabalho de pintura feito anteriormente
na sala foi: “Levei um susto com a cor amarelo canário escolhida para paredes e
piso” (in ROSA, 2016).
A
partir dessa primeira constatação, o grupo sentiu necessidade de transformar o
espaço. A pergunta formulada foi: Como organizar e tornar o local atrativo aos
alunos? Em uma primeira reunião, foram feitas medições de paredes, armários e
estantes, planejamentos e discussões. As ideias que surgiram e um plano de intervenção
criado neste mesmo dia, animou a equipe que, dali em diante, empreendeu
esforços no sentido de transformar a sala em uma biblioteca: um espaço em que
os estudantes gostassem de estar.
Procedimentos: do plano ao volume
Ao
proceder a recuperação física do espaço e o restauro de uma sala de aula que se
tornou biblioteca, primeiro observamos aberturas (janelas e portas e suas
dimensões, materiais e segurança) e medimos linearmente a sala e todos os
móveis e utensílios ali presentes. Listamos os aproveitáveis e descartamos
alguns incompatíveis[7]
com o projeto que iniciamos a traçar neste primeiro contato. Num segundo momento, avaliamos a necessidade
de recuperação do piso e das paredes (lixamento, uso de massa corrida e
pintura), a readequação, restauro e customização dos móveis (estantes,
armários, cadeiras e mesas) e dos utensílios como luminárias, ventiladores,
separadores de livros, quadros, teatro de fantoches, entre outros.
A
elaboração de planta com a disposição dos móveis/utensílios em espaços circunscritos
foi o auge desse primeiro encontro com o caos, como denominamos à época. Em uma
folha A4, depois de eliminar dois ou três esboços que haviam desconsiderado
mais adequadamente as proporções entre espaço e móveis, finalizamos um projeto:
em 100 metros quadrados, cinco ambientes para a futura Biblioteca. O passo
seguinte, a execução de um espaço de recepção, outro de leitura individual,
outro de estudo em grupo, mais um pequeno auditório e o espaço infantil
decorreu entre os meses de maio e novembro de 2016, quando, em uma festa,
entregamos à comunidade escolar uma Biblioteca. Em alguns momentos durante o
processo, ocorreu reavaliação e troca de rota. Especialmente no que diz
respeito ao trabalho em grupo[8],
ao trato da organização, distribuição de tarefas e limpeza da obra[9] e
ao convívio com os sujeitos da escola[10].
As
ações tiveram início a partir da retirada de cortinas, retoque na pintura das
paredes e recuperação do piso. Todos os
móveis receberam algum tratamento como retirada de portas para que os livros
ficassem expostos e mais acessíveis, ou ainda, customização com jornais. As cadeiras foram todas recuperadas, desde as
estruturas que receberam lixamento e pintura e um novo estofamento. Cadeiras
essas que atualmente, acompanham mesas, também recuperadas, em ilhas de estudo
e leitura.
Durante
o processo de restauro e reinvenção do espaço, houve diversas reavaliações, que
resultaram em algumas alterações no projeto e planta inicial, a fim de uma
melhor adequação dos móveis e utensílios. Exemplo maior dessa reavaliação foi a
incorporação de um nicho, anteriormente destinado a acomodar instrumentos
musicais da banda da escola. Liberado para a sala, realizamos nele um mini
auditório com múltimplos usos: projeção, aula em lousa digital, palestras, minicursos,
aula expositiva, leitura oral entre outras possibilidades.
Olhares curiosos: meninas e meninos
da escola e iniciação à pesquisa
Durante
esse processo, que ocorria em período de aulas, havia vários olhares curiosos,
querendo descobrir o que estava acontecendo naquele ambiente que, inicialmente,
se encontrava restrito ao grupo e alguns membros da escola. Os alunos estavam
sempre buscando alguma fresta para olhar a futura biblioteca. Dentre eles, no
período do recreio, duas meninas “espiavam” pela janela, e cochicharam: “Tá
ficando linda!”, disse uma. “Não! Tá ficando muito linda!”, completou a outra.
Percebendo
essa curiosidade, decidimos descobrir quais a expectativas que a comunidade
escolar tinha a respeito da “obra” que ali iniciáramos e conhecer se o novo ambiente
(delimitação de espaços internos, iluminação, mobiliário, cores e adereços) produziria
o desejo em frequentar a biblioteca. A partir disso, então, refletir sobre a
importância de ambientar o espaço da biblioteca escolar tornando-o agradável e
acolhedor à leitura e à formação do leitor. Observar o modo como as pessoas se
portam no espaço é, também, observar sua capacidade de perceber o mundo, sua
sensibilidade e cultura, de acordo com TUAN (1980). Citado por Drumond et all
(2000), para ele, a “percepção” é algo que pode ser considerado concretamente
“é visível no modo como o meio ambiente é construído e modificado”. Para tal,
estudantes e professores além de universitários envolvidos na reforma foram
ouvidos.
Fundada
em princípios da pesquisa qualitativa, inicialmente investigamos o assunto em
sites – Scielo e Google Acadêmico, especialmente – com as palavras-chave como
biblioteca escolar, reforma de biblioteca e políticas públicas de leitura,
entre outras. Descoberta a raridade na abordagem do tema, selecionamos os mais
próximos e os lemos. Os procedimentos escolhidos para esta investigação foram:
a) elaboração de questões abertas para estudantes e professores da escola e
universitários envolvidos na reforma; b) realização das entrevistas com um
grupo de estudantes, com a diretora e vice da escola e com algumas pessoas que
estavam envolvidas na reforma da biblioteca; c) degravação e análise das
entrevistas; d) leitura dos relatórios (fotográfico e documental) da reforma;
e) captura e citação de recortes do que foi dito ou escrito; f) escrita das
conclusões. Trabalhos resultantes foram publicizados a partir de questões
elaboradas de forma a conhecer o conceito de biblioteca para os sujeitos
envolvidos, bem como a descrição e o uso do espaço onde o acervo estava alocado
e o fato de não ter acesso a matérias para trabalhos e pesquisas, o espaço em
si e livros para leituras literárias durante o processo de restauro.
Conclusões: Um modo de ser antes e
depois da “obra na escola”
Tendo como foco a
educação em um espaço urbano relevante – a escola – e como escopo a produção de
ambiência em sua biblioteca, no artigo tivemos como desejo realizar uma
abordagem multidisciplinar, integrando o olhar da educação, da antropologia e
da arquitetura. Ao restaurar e instalar uma Biblioteca na Escola Estadual de
Ensino Fundamental Fernando Treptow[11], deixamos nossas
“assinaturas pessoais”: nas paredes, no piso, nos móveis recompostos, nos
objetos de ambientação ali dispostos. E em nossos relatórios escritos,
trabalhos apresentados em eventos, publicações nas redes digitais e imagens que
documentaram todo o processo[12]. Estas “assinaturas”
ficaram indelevelmente marcadas em nossas vidas, sabendo-nos integrantes de um
momento único em nossas formações como professores e cidadãos.
Ao subverter o espaço
que antes era padronizado, quadrado, entulhado e hostil ao deleite,
desacomodamos e intervimos na “estética” e na “ética urbana” até então vigentes
na escola: a biblioteca era um lugar pouco usado, com condições precárias de
acesso ao livro e à leitura. Com a intervenção, desacomodamos os sujeitos que
éramos, talvez o maior resultado.
Quando
nos referimos à seriedade com que tratamos o registro de um modo de ser e estar
em grupo na universidade e na sociedade, estamos nos referindo ao modo como
decidimos intervir e registrar. Temos a certeza, hoje, que indispúnhamos de
ferramentas para avaliar o impacto de cada uma de nossas decisões, mesmo as
tomadas após muito diálogo. Tínhamos um sonho, ainda não um projeto. Mas
inventamos uma planta, uma obra, relações de trabalho, uma política de
financiamento, um grupo de argumentos para defender a Universidade na cidade,
motivos para comemorar.
Sabíamos onde
queríamos chegar. Queríamos uma escola com livros, com uma biblioteca que
pertencesse a todos: às crianças e às professoras, à direção e às mães, aos
servidores e a nós mesmos, que não cansamos de voltar lá, de criar novos
projetos para ocupá-la, que não nos furtamos em elogiá-la, em divulgá-la, em
comemorá-la.
A
primeira sensação ao se entrar em uma instituição de ensino é que há nela
apenas um espaço que é utilizado por
todos indistintamente, apesar dos diferenciados objetivos. Este espaço é a
Biblioteca. É nela que se acumulam as fontes de pesquisa, os acervos de
literatura, as novas mídias que chegam, os mapas cartográficos e os demais
impressos que fazem com que o objetivo primordial da escola – ensinar a ler as
letras e o mundo que nos cerca – se realize.
Ansiosos
em inaugurar a biblioteca, adentrar seus espaços, os professores, durante o
restauro elogiaram a participação dos estudantes e surpreendem-se em saber que
a Universidade era a responsável pelo processo. Pensavam, e não se furtaram em
manifestar, que suas impressões anteriores indicavam que “a universidade só
quer fazer pesquisa e ir embora, nunca trazia um benefício para a escola, nunca
vinham”.
Nós,
“a universidade”, louco de felizes por contradizer as professoras. No fundo, no
entanto, sabíamos – ainda sabemos – que muitas vezes apenas descrevemos os
fenômenos, não intervimos neles. E temos boas desculpas para tal.
Nossa
proposição – intervir – pautou-se no desejo de verificar se éramos capazes, se
poderíamos invadir o mundo real, abandonar as salas de aula, experimentar as
palavras que lemos nos livros fundadores, nos inspiradores teóricos que sustentam
nossa formação política e pedagógica.
Paulo
Freire propôs ler sob uma árvore. Nós desenhamos uma árvore na parede da
biblioteca aproveitando a coluna para o seu tronco e a avolumamos com massa
corrida e cor. Depois, como “joões-de-barro”, construímos, com gravetos
recolhidos nos pátios de nossas casas. Ninho feito, colocamos lá passarinhos. E
sob sua copa, almofadas em que as crianças deitam para ler.
Nós,
em grupo, instauramos o trabalho como iguais: no piso, nas paredes, nos rolos
para pintura, na customização dos móveis, na faxina. E horizontalmente,
decidimos sobre o tempo, os prazos, os métodos, os espaços, os usos. Em grupo.
Tanto, que temos saudade de cada um dos dias ali vividos. Mesmo das dores, de
pequenos acidentes, impedimentos, trocas de função. Hoje, nos olhamos. Admiramo-nos.
Somos um grupo. Como nos ensinam os grandes da educação. Os que respeitamos.
Referências
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K. & ROSA, C.M. Espaço interno da biblioteca escolar: da planta à
inauguração. V SALÃO UNIVERSITÁRIO PET-FAURB. Disponível em: http://peteducacao.blogspot.com.br/2016/08/v-salao-universitario-pet-faurb.htmll
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K., NUNES, A. e ROSA, C.M. Biblioteca na escola: espaço e acervo. Disponível
em: http://ccs2.ufpel.edu.br/wp/2016/06/22/peteducacao-aprova-trabalhos-para-seminarios-de-literatura/
AZEVEDO, I.M.K.
& ROSA, C.M. Biblioteca escolar: impactos de uma reforma no espaço
interno. Pelotas: UFPel/SIEPE, 2017. Disponível em: http://peteducacao.blogspot.com.br/2016/08/siepe-ufpel-peteducacao-presente.html
CAMARGO, R.C. & ROSA, C.M. Biblioteca escolar: ambiente para a leitura e a formação do leitor. Pelotas:
UFPel/SIEPE, 2017. Disponível em: http://peteducacao.blogspot.com.br/2016/08/siepe-ufpel-peteducacao-presente.html
MAGNANI, José
Guilherme Cantor. A antropologia urbana e os desafios da metrópole. Aula
Inaugural. Tempo soc. vol.15 no.1 São Paulo Apr. 2003.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702003000100005
MENDONÇA, Eneida
Maria Souza. Apropriações do espaço público: alguns conceitos. Disponível em: http://www.revispsi.uerj.br/v7n2/artigos/pdf/v7n2a13.pdf
[1] O significado
de intervenção educativa parte de conceito de “interatividade” explicitado por Mendonça
(2007) e envolve “diversos segmentos relacionados à criação, à apropriação e à
manutenção do espaço público”. Acreditamos que as pessoas, seus desejos e intenções
interferem nos espaços quando ingressam nele, quando se apropriam do lugar e
essa interferência reconfigura os espaços, seus usos e significados.
[2] No sentido de extrapolar o
destino primeiro – uma biblioteca - e
passar a corresponder à imagem de determinado lugar: do estar em gruo, da
ambiência, do bem estar, do aconchego, da permanência, que “podem indicar
criatividade, capacidade de melhor aproveitamento das infra-estruturas públicas
e fornecer subsídios que alimentem o projeto e a construção de ambientes desta
natureza” (Mendonça, 2007).
[3] Entendemos
espaço urbano como parte de um todo e a escola, um “pedaço”, como inventou Magnani
(2003): “uma idéia nativa” que se
transformou em uma “categoria mais geral na medida em que permitiu discutir e
se integrar em outros esquemas conceituais”. Conectadas com esse conceito, passamos
a considerar a escola como “um campo de interação em que as pessoas se
encontram” e “criam novos laços”, instauram um espaço de sociabilidade de outra
ordem, diferente da casa e da rua.
[4] A etnografia deu suporte para nossas observações, descrições,
intervenções. Magnani (2007) escreve que a etnografia é “uma forma especial de operar em que o pesquisador entra em
contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte”, com o
intuito de “comparar suas próprias representações e teorias” e, assim, “tentar
sair com um modelo novo de entendimento”. O pesquisador conclui: “Esse é um insight, uma forma de
aproximação própria da abordagem etnográfica, (...) um empreendimento que supõe
(...) um trabalho paciente e continuado ao cabo do qual e em algum momento,
como mostrou Lévi-Strauss, os fragmentos se ordenam, perfazendo um significado
até mesmo inesperado”.
[5] Recuperação do
espaço interno da Biblioteca da Escola Estadual de Ensino Fundamental Fernando
Treptow: Memorial Descritivo. Disponível em: http://saladeleituraericoverissimoufpel.blogspot.com.br/2017/03/restauro-da-biblioteca-cristina-maria.html
[6] A instituição
escolar referenciada neste trabalho integra a rede publica estadual e
localiza-se no Bairro Fragata, a uma quadra da avenida principal. Atendia, em
2016, a aproximadamente 580 alunos nos turnos da manhã e tarde, além de 243
jovens e adultos no turno da noite.
[7] Havia na sala, além de móveis em
condições de uso após recuperação, acumulados e em decomposição, estantes,
cadeiras, armários, mesas, instrumentos musicais, mesa de jogos, colchonetes
para ginástica, quadros negros, televisores, ventiladores e uma infinidade de
outros utensílios que foram considerados descartáveis já no primeiro olhar. Com
a aquiescência da direção da escola, todos foram remanejados para locais mais
adequados.
[8] Adotamos o compartilhamento de
um café da manhã em todos os dias da obra, momento em que líamos, dialogávamos,
avaliávamos e reprojetávamos prazos, decidíamos por estratégias de
financiamento e comemorávamos aniversários.
[9] A cada dia de obra contávamos
com um e-mail da coordenação que listava tarefas e grupos para executá-las no
dia seguinte. Além disso, tomamos como necessário higienizar a obra a cada fim
de dia, marcando hora para o fim das tarefas. Isso nos causava uma boa
impressão e nos aproximava dos objetivos propostos.
[10] Durante o restauro, várias vezes
recebemos e incluímos crianças e adolescentes além de dirigentes para
acompanhar, conhecer e desenvolver tarefas. O intuito foi aproximá-los do
projeto e envolvê-los com os novos tempos que se avizinhavam.
[11] Renomeada a partir da
intervenção, atualmente a Biblioteca é intitulada Biblioteca Cristina Maria
Rosa.