Acervos em Bibliotecas: um caminho na formação de professores leitores
Cristina Maria Rosa
As palavras “repertório” e “acervo” literário, inicialmente,
apresentam uma semelhança: os dois termos referem-se a “um grupo de”. No
entanto, é nas suas diferenças que reside os atributos mais delineadores de
cada um dos termos. Enquanto acervo pode significar “grupo selecionado para a
um fim” ou, “conjunto alocado em um local fixo ou digital” e ainda “coleção de
uma pessoa ou local”, repertório é mais amplo e pode ultrapassar a memória do
portador, uma vez que não é preciso "ter" para conhecer. São duas
palavras importantes que agregam valor ao conhecimento prévio que todos devemos
ter quando se busca aprofundar saberes no campo da leitura literária na escola.
É interessante lembrar que cada um de nós tem um grupo de
informações literárias. Um conjunto de lembranças sobre momentos com os livros
que, não raro, iniciaram na infância e se perpetuaram. A Fada dos
Moranguinhos, meu primeiro livro, a audição de histórias na escola aos
cinco anos, um grupo de livro que eu não podia tocar, a mãe lendo uma carta
vinda da Itália, o pai trazendo um exemplar de presente, são algumas das minhas
memórias e integram o meu repertório de informações sobre o livro e a leitura,
seu significado e permanência na cultura escrita de minha família. É esse
conjunto único, repleto de emoções e informações que tornam livros, autores,
tramas, desfechos, gêneros – um grupo, portanto – os nossos
"prediletos" e se cristalizam como o nosso repertório.
Ele, o repertório, é aprimorado com ritos, modos, jeitos de
ter e manipular os livros. Incrementado com dados sobre o valor social desta ou
daquela obra. Acrescido da rede de relações que o conhecimento de uma
obra/autor/gênero gera entre a comunidade de leitores. E se torna pleno quando
oportuniza “dobrar-se sobre si mesmo e estabelecer uma prosa entre o real e o
idealizado” (Queirós, 2009).
Repertório, por sua vez, é um grupo de informações
literárias único, formado ao longo do tempo em que herdamos, produzimos e
utilizamos informações, emoções, memórias, palavras, inventos. Isso é
repertório. Repertório, então, é o grupo de emoções e informações literárias
que acumulamos ao longo da vida e que dão sentido ao que chamamos “literatura
em minha vida”. No dicionário, repertório significa “conjunto, índice,
aglomerado, coletânea, compilação, coleção, grupo de saberes sobre algo”. Mas
também, “conjunto de experiências de vida que cada um de nós possui”. No caso
de repertório literário, é o conjunto de experiências literárias que temos e
consideramos importantes, imprescindíveis para o letramento. Assim, desde o
primeiro contato com o livro e seu significado até a escolha por gêneros e
autores prediletos há um longo processo de alimentação do que se conhece por
repertório. Ele é infinito, nem sempre passível de ser descrito, mas reverbera
em nossa vida para sempre. Importante antes, durante e posteriormente à escola.
Ao definir o que é acervo, precisamos considerar que este abarca
o grupo de obras que um sujeito (uma pessoa ou sua família, por exemplo) ou
local – livraria, sebo, biblioteca, entre outros – possui. É um grupo nomeado,
quase sempre organizado, que integra a biblioteca de alguém ou de um local como
escolas e universidades. Pode ser real (material, impresso, físico) ou virtual,
quando só está disponível para consulta online. O acervo refere-se a um grupo
delimitado, finito, que tem regras de uso e acesso, E pode ainda ser
representado por um catálogo de uma editora, um grupo de obras referentes a um
tema, as referências utilizadas em um trabalho científico.
O acerco refere-se a um grupo delimitado, finito, que tem
regras de uso e acesso, que pode se modificar infinitamente em termos de
quantidade e que pode ser acessado por todos, idealmente, ao mesmo tempo. Um
acervo literário pessoal é composto por obras escolhidas, dentro de um recorte
temporal, e pode ser completado por herdeiros, ou seja, acrescido de outras
obras, infinitamente. Assim, agrega-se ao recebido, modos de uso como ler,
conhecer, escolher, guardar, preservar e, muitas vezes, ampliar, doar,
selecionar, catalogar... Ao lidar com um acervo, demando atributos do
repertório literário que tenho – os modos de ter e manter, por exemplo – para
utilizá-lo. Nele, uma obra levada para casa – comprada ou roubada de um sebo,
biblioteca, livraria ou casa de alguém – assinala o pertencimento ao repertório
de histórias que me encantam.
3. O que
e por que ler: critérios...
Ao escolhermos uma obra a ser lida para nossas crianças, em
casa ou na escola, um grupo considerável de critérios precisam ser
considerados, entre eles, autoria, gênero, ilustrador, quantidade e qualidade
do texto e até temas que podem desencadear indagações e diálogos acalorados. Critério
significa "julgamento" e pode ser entendido como juízo, discernimento
ou mesmo a opinião de uma pessoa. É uma condição subjetiva que possibilita
optar, escolher e, por isso, por definir nossas escolhas, é considerado um
juízo de valor.
Juízos de valor podem ser pessoais, mas não os empregamos
apenas no âmbito pessoal. Se os utilizamos para julgamentos de questões que
extrapolam nossas vidas privadas, devem ser considerados no tanto que implicam
nas vidas dos demais. Assim é com a escolha de um livro a ser lido para
crianças, pois os adultos precisam saber defendê-lo, ou seja, evidenciar a
relevância de tal obra na formação de crianças. No caso da escola, mais
aprimorados ainda devem ser os critérios de escolha do que ler aos pequenos;
As escolhas de livros a serem lidos em nossas
casas – que envolvem gostos pessoais ou familiares e razões
religiosas, éticas e morais – podem ser de qualquer tipo, pois
implicam em uma dimensão individual em que, supostamente, apenas o sujeito e
sua família serão beneficiados ou prejudicados. As escolhas públicas – na
escola e para processos educativos – implicam em uma dimensão para além do
indivíduo, ou seja, envolvem os alunos de uma classe inteira e até a escola
como um todo, não esquecendo que o conhecimento destas narrativas reverbera nas
famílias dos meninos e meninas que frequentam a escola. Atingem desde a criança
até a sociedade como um todo. Assim, um juízo de valor externado em uma
escolha literária implica em, necessariamente, considerar o impacto de
nossas opiniões na vida dos demais, tanto pela nossa formação como exercício
profissional;
Um professor não pode atuar sem ter critérios de escolha.
Tê-los é parte do conjunto de obrigações de sua docência, é um atributo da
professoralidade, uma vez que implica na formação literária das novas gerações.
Assim, escolher o que ler para as crianças extrapola o “gosto” pessoal e se inscreve
no rol de responsabilidades no que tange à formação de leitores de literatura. Assim,
um juízo de valor externado em uma escolha literária implica em,
necessariamente, considerar o impacto de nossas opiniões na vida dos demais em
sociedade. Implica em, por isso mesmo, considerar o que os outros pensam a
respeito do mesmo assunto, como se posicionam, como manifestam o que pensam.