Controverso
e evidentemente interessante, o significado da palavra aluno vem sendo
questionado por linguistas e por usuários, competentes ou não, de nossa língua
portuguesa. Claudio Moreno[i]
dedicou-se a uma pesquisa sobre o termo e nos apresenta, em pequeno artigo,
suas conclusões, disponíveis em http://sualingua.com.br/2010/06/05/aluno/
Aluno
Claudio Moreno
Quem conhece os doze
trabalhos de Hércules deve lembrar o quanto penou nosso herói para matar a
Hidra de Lerna, uma monstruosa serpente de sete cabeças, todas elas dotadas de
presas venenosíssimas. Parecia uma tarefa impossível, pois para cada cabeça cortada
brotavam outras duas, novinhas em folha — e estariam se multiplicando até hoje,
infinitamente, se Hércules não tivesse a ideia de cauterizar os
pescoços decepados com a chama de uma tocha (para mais detalhes, sugiro uma
volta aos Os Doze Trabalhos de Hércules, na versão genial de Monteiro
Lobato). É a esta mesmíssima Hidra, aliás, que estamos nos referindo quando
chamamos uma tarefa difícil de “bicho-de-sete-cabeças”.
Sempre me lembro dela
e de suas cabeças renováveis quando vejo renascerem velhos mitos linguísticos que
há muito foram sepultados. Confesso que alguns deles são realmente duros de
matar! Apesar de transpassados pela espada da razão e pela lança da ciência,
não é que volta e meia eles reaparecem para assombrar os cristãos? Pois um
leitor de Santa Maria acaba de enviar um apelo para que eu o ajude a enterrar —
se possível, de forma definitiva — aquela já tão desacreditada versão de que a
palavra aluno carregaria consigo um sentido pejorativo. Mas de novo?
Depois de tudo o que se escreveu sobre isso, alguém ainda insiste em defender
uma tão rematada tolice? Acho que posso imaginar o desânimo de Hércules, ao ver
as hediondas cabeças renascerem…
A palavra aluno vem
do Latim alumnus (até aí
morreu Neves), da família do verbo alere (“criar, alimentar”).
Designa a criança que ainda precisa ser nutrida e cuidada — inicialmente no
sentido do alimento físico, passando mais tarde ao sentido do alimento do
espírito. Circula por aí — principalmente nos meios pedagógicos, o que é, no
mínimo, curioso — a interpretação macarrônica de que a palavra viria, na
verdade, da junção do prefixo privativo a- (“que não tem”) com o
substantivo lumen (“luz”; corresponde ao nosso lume). Isso a
tornaria uma palavra politicamente incorreta, ao sugerir que o estudante seria
alguém que vive na treva, à espera da iluminação do professor — o que, dizem
algumas vozes modernosas, descreve uma relação desigual, de cima para baixo,
quando, na verdade, o professor e o estudante deveriam idealmente manter uma
relação de colaboração, funcionando à semelhança dos dois pauzinhos que,
atritados um contra o outro, acabam produzindo fogo. Como na Idade da Pedra.
Parece que voltamos
aos tempos de Isidoro de Sevilha, dicionarista da Idade Média, que era mestre
em torcer o bracinho da etimologia até que ela confessasse o que ele desejava
ouvir. Como teólogo (depois santificado), via na “origem” das palavras a
evidência das Escrituras; por exemplo, para ele, a morte (em Latim, mors)
vem de morsus (“mordida”), pois o homem só passou a ser mortal depois
da primeira mordida que o pai Adão deu na maçã… No caso de aluno, nota-se
o mesmo desrespeito à realidade linguística para fins ideológicos.
Não vou discutir aqui a concepção pedagógica que está por trás dessa
interpretação forçada, com a qual não concordo, mas vou me ater exclusivamente
à etimologia do termo. Já falamos nisso aqui nesta coluna: o prefixo privativo a- é
do Grego (acéfalo, analfabeto, etc.), enquanto lumen é do Latim.
É verdade que palavras modernas — amoral, televisão — podem ser
formadas pela união de elementos de línguas diferentes, mas este não é o caso;
em alumnus, vocábulo latino muito antigo, não existe prefixo algum, muito
menos grego.
Para tentar pôr um fim
a essa lengalenga, recomendo a leitura urgente de um valiosíssimo livrinho que
todo pedagogo deveria incluir entre suas obras de referência: trata-se de um
“dicionário etimológico para ensinar e aprender”, intitulado Oculto nas
Palavras, de Luis Castello e Claudia Mársico, professores de Letras Clássicas
da Universidade de Buenos Aires (traduzido aqui pela Editora Autêntica, de Belo
Horizonte, em 2007).Ali encontrarão, bem explicada e fundamentada, a etimologia
de uma centena e meia de palavras pertinentes ao ensino e à educação (como educar, orientar,
adolescente, discípulo, tutor, mestre, etc.).
Tenho certeza de que
os verbetes, que são muito completos e muito bem escritos, serão de grande
utilidade para os estudiosos e pesquisadores da área, principalmente por
colocarem uma pedra sobre o tão pernicioso “achismo” de nosso mundo acadêmico.
A respeito de aluno, por exemplo, os autores começam dizendo, com
serenidade e firmeza: “O termo foi, curiosamente, objeto de uma explicação
etimológica disparatada (…). Aluno seria ‘o que não possui luz’, ‘o que está no
escuro’, e que, portanto, busca ‘iluminar-se’ mediante o estudo. Essa
explicação, decerto, não resiste à menor análise histórica ou linguística.
E por aí eles vão.
[i]
Cláudio Moreno. Professor, escritor e ensaísta
brasileiro, do jardim de infância à universidade,
estudou toda sua vida em escolas públicas e gratuitas, razão pela qual,
sentindo-se em dívida para com aqueles que indiretamente custearam sua
educação, resolveu criar e manter o site "Sua Língua", como uma
pequena retribuição por aquilo que recebeu. Coordena, atualmente, a área de
Língua Portuguesa em instituição privada de ensino médio de Porto Alegre. Escreve
regularmente no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde mantém uma seção sobre
Mitologia Clássica e outra sobre questões relativas à língua portuguesa.
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