Representatividade africana na literatura e a construção da identidade
Débora
Monteiro
Luzia Martins
Mariana Paz
Representatividade
africana na literatura e a construção da identidade
Desde algum tempo,
vem-se discutindo a questão da representatividade africana em todos os âmbitos:
na televisão, nas empresas, na ciência e na literatura. Na escola, não poderia
ser diferente.
Nós, futuras
pedagogas, devemos nos ocupar com a formação das crianças o que ocorre, também,
através da literatura. Assim, livros literários que estão nas salas de aula e
nas bibliotecas nos interessam conhecer, pois o contato, a apreciação, a
discussão dos pequenos sobre o "mundo literário" é crucial na
primeira infância, no desenvolvimento infantil e na construção da identidade de
cada um. Além disso, é através da literatura que conhecemos o que o outro
pensa, mesmo que seja divergente de nossas próprias crenças, valores, ética.
A construção da
identidade da criança, na escola, passa, inevitavelmente pelos referenciais
(conceitos e atitudes) que forem a ela apresentados. Neste aspecto, destacamos
principalmente, os brinquedos e as brincadeiras, os personagens de desenho
animado e as histórias infantis. Sobre personagens da literatura, Mariosa e
Reis (2011, p.42) consideram que em parte considerável dela, "a criança
vai deparar com os personagens de origem europeia, mocinhas brancas e frágeis
esperando por príncipes, também brancos, que irão salvá-las. Raramente, heróis
africanos estão presentes.
Assim, faz-se
necessário apresentar aos pequenos, na escola, livros literários de qualidade,
pois de acordo com Zilberman (2009, p. 17), "a experiência da leitura de
um texto literário", tem a capacidade de "provocar no indivíduo os
efeitos do estado de alteridade". Ou seja, a autora imagina e prevê que ao
conhecer como "o outro" pensa, a criança pode se colocar no lugar
dele e é isso que torna a literatura "capaz de expandir os horizontes
daquele que lê, mesmo em situações em que o contexto vivido é completamente
diferente do lido".
O que se pode
observar, com raras exceções, é que a literatura apresentada às crianças na
escola nem sempre abarca as diversas identidades e formas de ser humano, se
limitando, muitas vezes, a apenas uma identidade, a branca. Dessa forma,
crianças negras, na maioria das vezes, não se veem representadas em livros
didáticos ou literários. Quando são personagens nessas histórias, não ocupam
cargos ou papéis de destaque. Sobre essa questão, Fanny Abramovich, na obra
Literatura Infantil: gostosuras e bobices (1997) já atentava, nos anos 90 do
Século XX, para "as caras do terceiro mundo", inexistentes nas obras
literárias analisadas por ela. Em suas palavras:
É incrível
como se confundem e até se reforçam, nos livros infantis, o ético e o estético.
[...] A fada, a princesa, a mocinha são sempre protótipos da raça ariana:
cabelos longos e loiros, olhos azuis, corpo esbelto, altura média, roupa
imaculada. [...] O preto? Ora, somente ocupa funções de serviçal. Normalmente é
desempregado, subalterno, tornando claro que é coadjuvante na ação e, por
consequência, é subalterno na vida [...].
Para Mariosa e Reis
(2011), a presença desses estereótipos nos livros oportuniza que as crianças
cresçam “com a sensação de que os padrões do belo e do bom são aqueles com os
quais se deparam nos livros infantis”. Os autores pensam também, que as
crianças brancas “vão se identificar e pensar serem superiores às demais”,
enquanto que as crianças negras “alimentarão a imagem de que são inferiores e
inadequadas” e podem crescer com a “ideia de branqueamento introjetada”.
A falta de
representação positiva de um povo – em jornais, livros, obras de arte,
publicidade, cinema, música, teatro, entre outras – desencadeia um sentimento
de inferiorização e auto rejeição de seus valores éticos, estéticos e
culturais, prevalecendo os valores dominantes.
O atraso do retrato
negro na literatura brasileira é ainda mais notável, uma vez que este espaço de
manifestação – a escrita, em forma de literatura – não fazia parte de suas
vidas. Isto faz com que suas representações sejam feitas por terceiros, o que
mantém a posição de desprestigio e repetindo as tais representações que tentavam
romper.
Para Jovino (2006, p.
187), “somente a partir de 1975 é que vamos encontrar uma produção de
literatura infantil mais comprometida com uma outra representação da vida
social brasileira” e, por isso, “podemos conhecer nesse período obras em que a
cultura e os personagens negros figurem com mais frequência”
Reconhecer a Cultura
Afro-Brasileira como uma das mais fluentes na construção do Brasil é de suma
importância à medida em que nota-se que a perspectiva eurocêntrica, está e
sempre esteve presente nas mais diversas produções e, nas produções infantis,
não é diferente. Neste contexto, não se pode negar que a educação brasileira é
reflexo de uma orientação eurocêntrica que acabou conduzindo as pessoas a
reproduzirem, consciente ou inconscientemente, as discriminações e preconceitos
oriundos da incapacidade socialmente estabelecida, de lidar com a diversidade
humana.
Exatamente por isso,
a maioria dos livros e outros materiais didáticos refletem em seus conteúdos,
os mesmos preconceitos e depreciações a culturas que não possuem a mesma origem
ocidental, de acordo com Munanga (2005, p. 15).
O Brasil, de acordo
com SANTOS[1], é um país composto por várias etnias: europeus, africanos,
índios e outros povos. Essas variações étnicas se refletem no espaço onde se
inicia a vida cultural de um povo, a escola e a “vida escolar brasileira é
composta por várias histórias” e diferentes famílias, o que proporciona ao
professor a criação de um “processo didático interativo em que um aprende com o
outro”. Cabe a ele, então, “mediar” situações, “pois em geral, os alunos mais
pobres são os negros e correm os maiores riscos de serem discriminados”.
Atualmente, são
visíveis as diferentes percepções de mundo, de belo e aceitável, às quais as
crianças são expostas desde seu nascimento, se estendendo por toda a vida.
Isso, por sua vez, pode levar ao desprezo e a negação da sua cultura, fazendo
com que o sujeito não se reconheça como pertencente a ela, por nunca ter tido
acesso e conhecimento deste universo ou por este universo ter sido apresentado
como negativo implícita ou explicitamente. Para este último caso, Gerusa,
Lucilene e Davidson (2018, p. 177), explicam:
Na obra
citada, Fanon, ao analisar o homem preto e suas psicopatologias, ou seja, o surgimento
das neuroses e dos traumas de sua consciência, segundo os fundamentos
freudianos, constatou que estas teriam origens em determinadas vivências na
infância, em comparação aos fundamentos estabelecidos pela estrutura da família
tradicional, branca e burguesa. Afirmou que o homem preto, à “medida que entra
em contato direto com a realidade social, diante das manifestações subjetivas
dos brancos, percebe que muitas das proposições que absorveu, seus ideais e
concepções de mundo, são irreais para ele” (SABINO, LOURENÇO, SILVA, 2018. p.
177).
Ao pensar em
literatura, é preciso ir além do lazer e prazer da leitura, e considerá-la como
instrumento de relações sociais, de conhecimento e de algum modo, de luta, pois
é importante “não reduzir a literatura infantil apenas ao processo de
instrumentalização pedagógica”. Ela é “um legado histórico, político e social
fundamental, que fará parte do imaginário dos futuros adultos”, de acordo com
Sabino, Lourenço e Silva (2018, p.173).
Como futuras
professoras, acreditamos que a escola pode atuar como um elemento estrutural de
mudança cultural. Assim, pensamos que o material didático (livros, cadernos,
estojos, mochilas), a literatura (os livros, os gêneros, os autores), os vídeos
(filmes, desenhos, postagens, clips) e mesmo as atitudes de professores, coordenadores
e diretores deverão “reafirmar valores como a igualdade, solidariedade,
tolerância, justiça e ética” (SABINO, LOURENÇO e SILVA: 2018, p.177).
Literatura: meio
condutor?
A literatura infantil
apresenta-se às crianças como meio condutor de informações e conhecimentos
sociais. Para Silva (2019. p. 9-10), é através dela que os pequenos “irão
aprender e desenvolver seu papel social e construir sua identidade e
personalidade”, pois, para o autor, os livros “têm a finalidade de referencial
e entreter de forma prazerosa”, caracterizando-se como “pilar importante na
construção social do indivíduo”.
É nesse contexto que
a Literatura Infantil Afro-Brasileira surge como um instrumento fundamental
para a construção da identidade e autoestima da criança negra. Para Mariosa e
Reis (2011, p. 43), um “trabalho com literatura afro-brasileira, onde os heróis
são referencias em histórias como protagonistas negros”, pode contribuir, tanto
para a” construção da identidade e da autoestima de crianças negras como para a
valorização da convivência na diversidade com a criança branca”. Portanto, fica
evidente que a literatura é de fundamental importância no desenvolvimento, não
só da leitura e da escrita, mas também, na construção da identidade, na
formulação da autoestima, no enriquecimento cultural e muito mais.
Produções
literárias
A perspectiva
desenvolvida acima direciona atenção aos conteúdos das produções literárias, já
que a criança utiliza como espelho ou referencial as abordagens das obras no
seu contexto social. A literatura infantil contribui de forma expressiva para a
formação do seu leitor e possivelmente influencia suas práticas sociais,
exaltando assim o poder da leitura na vida do indivíduo. No âmbito infantil a
questão da representatividade é ainda mais importante. A criança é um ser em
formação, e tudo que lhe for exposto contribuirá para a formação de sua
identidade e personalidade.
Diante do contexto,
Silva (2019, p.10), nos questiona: É necessário pensar em representação para o
público infantil? Qual a representação do negro apresentada para as crianças? A
sociedade estaria propagando correntes racistas implícitas aos pequenos pelo
fato de estereotipar negativamente ou invisibilizar indivíduos negros no
contexto social de suas produções literárias?
Investir na
construção de uma identidade significa abrir caminho para a revolução no jeito
de pensar da sociedade contemporânea, pois os educandos de hoje serão a
sociedade de amanhã. A literatura, nesse ínterim, pode ser um espaço de
problematização do movimento ocorrido em nossa sociedade (SILVA, 2010, p. 35).
Sabendo desta grande
importância e responsabilidade que temos ao apresentar a literatura aos alunos,
faz-se urgente usar de critérios na seleção da literatura para o cotidiano da
sala de aula.
O papel da escola na
escolha dos livros utilizados nas séries iniciais é fundamental. É uma das
responsabilidades da escola atentar para a escolha do acervo de sua biblioteca,
devendo optar por livros que contribuam para a formação de uma identidade positiva
do negro e, simultaneamente, proporcionar aos alunos não negros o contato com a
diversidade e as especificidades da cultura africana, deixando, assim, para
trás, uma visão estereotipada e preconceituosa das idiossincrasias dos
referenciais afrodescendentes. Aprendendo a valorizar também as contribuições
dos africanos para a cultura brasileira. (SILVA, 2010. P. 6)
A partir da
importância de critérios de seleção de livros, a escola deve analisar e
enriquecer seus acervos, valorizando as diversas etnias e a interação entre os
grupos étnicos, pois, ao fazer isso, estará investindo na construção da
identidade de todos os seus alunos, não apenas de alguns.
Tendo em vista que o
contato literário de muitas crianças se limita apenas à biblioteca da escola, é
fundamental que nela se encontrem facilmente livros que abordem personagens e
temas negros e não negros. Isso, por sua vez, contribuirá para o
desenvolvimento de uma geração que reconheça a população e a cultura negra, não
como pessoas secundárias e desprezíveis, mas como seres humanos com seus
diretos e valores. É através da literatura que a criança “recria” sua
realidade, conseguindo imaginar e ultrapassar seus parâmetros. É fundamental,
também, reconhecer a necessidade de discutir preconceito e racismo em sala de
aula. Pois, conforme WERNECK
Sem o apoio
dos adultos, a criança busca mecanismos de atender à sua curiosidade acerca das
diferenças individuais. Liga sua possante antena parabólica e começa a captar
informações truncadas e estereotipadas dali e daqui, incluindo as da mídia
(2003, p.11).
Os livros
apresentados às crianças não devem tratar apenas de preconceito, mas trazer
personagens negros em papéis relevantes, além de boas imagens referência para
os alunos observarem.
Para Pires; Sousa;
Souza (2005, p.1), não basta trazer personagens negras e abordagens sobre
preconceitos. É importante levar em consideração o modo como são trabalhados o
texto e a ilustração Quanto aos professores, é indispensável a compreensão e
constante busca das diversas culturas e seus valores, para abordá-las em sala
de aula, para fazer da escola um lugar privilegiado, rico em cultura, formando
indivíduos desprendidos de racismo e preconceito.
Os dirigentes e
professores precisam despertar suas consciências para reconhecer a necessidade
de um trabalho literário que contemple a diversidade, despertando nos pequenos
leitores, senso crítico e discernimento com textos específicos (MARIOSA; REIS.
2011. P. 49). Para tanto, todos devem analisar suas escolhas ao apresentar o mundo
literário à criança, pois "estas histórias são capazes de construir
sentidos de pertencimento ou exclusão" (MARIOSA, REIS, 2011, p. 49).
Devemos 'ir atrás' de livros ricos e que representem nossos alunos e suas
culturas plurais, para que todos se sintam incluídos como sujeitos pertencentes
e produtores de história, como de fato o são.
Nesse sentido,
especialmente no Brasil, a escola e, portanto, todo material de apoio à
formação da pessoa e do cidadão, precisa contribuir para que o negro se
“reconheça na cultura nacional” expressando uma visão de mundo autônoma, com
protagonismo. É preciso que a escola, ao reconhecer, elaborar e compartilhar a
história do povo africano e suas referências positivas, contribua para que as
crianças negras não se imaginem como seres de segunda classe, inferiores,
destinados a terem um papel de subalternidade social. Assim, é preciso
considerar um processo de educação que apoie a formação do sujeito que se pensa
construtor de sua própria história, que respeita e valoriza a diversidade,
constatando que a riqueza cultural de um povo se funda nesta característica
(SABINO, LORENÇO e SILVA, 2019, p.177).
Para discutirmos um
exemplo do preconceito introjetado nas obras infantis, antes de tudo precisamos
entender que
“... é
essencial a consciência de pessoas brancas à respeito de suas posições e
privilégios a fim de começar a discutir e se possivelmente iniciar o resolver
das problemáticas que abrangem o negro brasileiro, e entre essas problemáticas
enfatiza-se os conceitos de representatividade. Em uma sociedade racista que se
criou um mito de democracia racial é essencial compreender o racismo como fator
sistemático político que permanece nas entranhas sociais mascarando uma
realidade cruenta, onde os não-brancos são marginalizados, têm seus direitos
negligenciados e negados, situados em lugares pré-determinados por uma
hegemonia e retratados de modo pejorativo quando essa representação acontece,
até porque na maioria das vezes o que compreende-se é uma exclusão social”
(SILVA, 2019, p. 8).
Refletir sobre estas
questões reafirma o que já se sabe: o negro é, muitas vezes, representado de
forma pejorativa dentro da literatura. Isso é o reflexo de uma sociedade que
ainda trata pessoas negras como meros instrumentos de trabalho, explorando e
não valorizando, ou valorizando pouco sua vida e seu trabalho, fazendo com que
exista uma escravidão contemporânea camuflada. Não podemos reproduzir estes
modelos preconceituosos. Podemos começar uma grande mudança a partir da nossa sala
de aula, com os livros escolhidos, as formas de apresentá-lo e explorá-lo e a
constante reflexão e diálogo sobre preconceito.
Ter apenas um tipo de
representação colabora com o enfraquecimento da autoestima, não possuir nenhuma
personagem que se assemelhe a você faz com que pareça, na verdade, que o
problema está justamente em como você é e que é preciso se aproximar do que é
exibido para ser considerado belo (VASCO, 2017 apud SILVA, 2019, p. 10). Neste
contexto de dor e ansiedade gerado pelo preconceito e pela falta de
representatividade positiva dos negros na literatura, especificamente nos
clássicos infantis, que se transformam em desenhos televisionados e viram
fenômenos de vendas, vorazmente patrocinados pela mídia de massa e consumidos
em formas de brinquedos, roupas, sapatos, temas de festas de aniversários, tal
como as princesas da Disney, está claro que a criança negra não se identifica,
não se reconhece e, portanto, não deseja ter as características da sua etnia.
As obras de Monteiro
Lobato, em nosso entendimento, claramente explicitam preconceitos. Não queremos
condenar a obra do autor, mas intencionamos mostrar como é fundamental aguçar
nosso olhar crítico na escolha dos livros literários que vamos apresentar às
crianças e nas várias possibilidades de explorar estes livros na sala de aula.
Em uma das passagens,
Silva (2019, p.14), que analisa as manifestações de racismo na obra de Lobato
informa que as crianças do sítio dirigem-se à Nastácia de modo inapropriado,
associando a sua cor e idade a aspectos depreciativos. Leia:
A negra teve
um faniquito dos de cair desmaiada no chão. Ouvindo o baque do seu corpo, todos
pularam da cama – e foi uma dificuldade fazê-la voltar a si. Desmaios de negra
velha é dos mais rijos.
Em outra passagem, a
fala de Emília é: “Burrona! Negra beiçuda! Deus que te marcou, alguma coisa em
ti achou. Quando ele preteja uma criatura é por castigo”. E, em outro trecho,
Emília explica algo a respeito de Tia Nastácia:
Esta burrona
teve medo de cortar a ponta da asa do anjinho. Eu bem que avisei. Eu vivia
insistindo. Hoje mesmo insisti. E ela, com esse beição todo: “Não tenho
coragem... É sacrilégio...”. Sacrilégio é esse nariz chato! (SILVA, 2019,
p.15).
Como fica evidente,
no artigo “A construção da identidade da criança negra: a literatura afro como
possibilidade reflexiva”, Silva (2019) expõe ideias a partir de excertos da
obra de Lobato. Para a autora, em O Sítio do Pica-pau Amarelo, Lobato apresenta
negros como “seres inferiores e que podem até mesmo serem comparados com a sujeira”. E o fato de
naturalizar a visão do negro como serviçal, através da figura da tia Nastácia,
mostra o preconceito dentro da obra do autor. De acordo com a argumentação da
autora, Monteiro Lobato imprime em seus textos a ideia de que ser negro é uma
maldição e, como futuras pedagogas, consideramos que a obra O Sítio do Pica-pau
Amarelo, por fazer parte da infância de várias crianças negras, contribui para
uma compreensão errada de que o negro em sociedade deve estar sempre no papel
de servir.
Racismo
estrutural
Pensar criticamente
sobre o racismo estrutural – o racismo enraizado na sociedade, em todos os
âmbitos – é tarefa de todos. Dos professores, em especial.
Refletido na
literatura, e, consequentemente na visão daqueles que a acessam, o racismo
corrobora a ideia de que ser negro é ser o oposto do que é belo e aceitável
socialmente, o que contribui não só para um processo de auto inferiorização do
negro em sociedade, mas, também, para a não aceitação do seu próprio eu, e, às
vezes, até mesmo um desprezo por seu estereótipo. Por isso, é fundamental não
reduzir a literatura infantil a processos de instrumentalização pedagógica.
Literatura, para Sabino, Lorenço e Silva (2019, p.173), é “um legado histórico,
político e social fundamental, que fará parte do imaginário dos futuros
adultos”.
Mesmo após o fim da
escravidão, o Estado e os seus braços institucionais jurídicos, científicos e
educacionais, patrocinaram, durante décadas, a ideologia de higienização do
país a fim de alavancar o progresso, não há outra possibilidade de pôr fim ao
terror do racismo estrutural atualmente vivenciado no país, senão também, por
meio de fomento massivo em políticas públicas orientadas a um novo modelo de
organização social, sobretudo que respeite a diversidade (SABINO, LORENÇO,
SILVA, 2019, p.175). Este paradigma vem sendo modificado, aos poucos e com
muita luta.
Os textos
relacionados à literatura afro-brasileira são encontrados em maior quantidade e
as temáticas são diversas. Sendo assim, é necessário que haja disposição
política para que sejam trabalhados de forma assertiva, em ambiente escolar e
durante todo o ano letivo e não apenas em novembro, mês da consciência negra,
único período no qual a maioria das escolas lembra-se de trabalhar temáticas
étnico-raciais (MARIOSA, REIS, 2011, p. 46).
Assim, é possível
perceber certo avanço por parte da literatura, que reconhece as pessoas negras
como parte de uma historia que deve ser contada, que busca “obras que não se
prendem ao passado histórico da escravização” (JOVINO, 2006), mas atentam
também a produção de cultura do e no presente.
Faz-se necessário
salientar, também, o grande avanço que estamos tendo. Hoje, notamos uma grande
mudança na apresentação dos textos literários e nas suas ilustrações. Embora o
preconceito ainda exista de forma grandiosa, notamos um grande avanço e muitas
pessoas conscientizadas sobre a seriedade do preconceito. Que possamos ensinar
nossas crianças que existe apenas uma raça, a humana, e que sua diversidade a
torna bela!
Para iniciar esta
pesquisa, reunimos textos e artigos referentes ao assunto. Partimos de uma
questão-chave: Qual a importância, para ti, da representatividade afro dentro
da literatura para construção de identidade das crianças afrodescendentes?
Escolhemos uma imagem
para representar essa investigação e, após, a encaminhamos a nossos contatos no
whattsapp. Estabelecemos uma data limite para receber as respostas e elas, após
o envio, foram transcritas. Ao todo, recebemos 13 respostas.
Acreditamos que, por
ser uma pergunta extensa e tratando de um assunto supostamente delicado, como
“cultura afro” e construção da identidade de crianças, não houve um grande
numero de respostas.
As
respostas...
Em variados campos,
mas com o mesmo destino, as respostas recebidas indicam que a
representatividade “afro” é, sim, importante. Ao que se refere às crianças, os
interlocutores disseram que pensam que a Literatura se torna uma ferramenta
para esta identidade, permitindo que as crianças negras criem e alimentem seus
sonhos e desejos. Uma das respostas foi:
Quanto mais
cedo à criança descobrir que pode ser médico, enfermeiro, astronauta, modelo,
ator, cantor, dançarino, atleta, professor, juíz, advogado, o que quiser, o que
almeja ser, teremos um adulto frustrado a menos. E menos desigualdade
profissional também, por que ela vai ter conhecimento de que o seu lugar é o
lugar que ela quiser ocupar e não o que os livros, a mídia e a nossa história
insistem em mostrar pra elas.
Outra questão
evidenciada nas respostas recebidas foi a imagem do negro inteiramente
relacionado à escravidão, com retratados literários se resumindo ao período
escravocrata no Brasil, expondo apenas o lado doloroso da história. Os depoentes
consideraram a literatura atual como uma oportunidade de expor novos paradigmas
sobre a imagem negra, para que não se resuma a figura estereotipada que
conhecemos. Uma das respostas recebidas foi:
Por
experiência própria, é muito necessário que nós, pretos e pretas nos sintamos
incluídos na historia, não só pela parte que sofreu. As pessoas só sabem da
história da escravidão e da Princesa Isabel, mas não se fala nas lutas do povo
preto. Então, é muito importante que autores pretos sejam expostos para nós,
para nos sentirmos representados. Tirar essa branquitude, que só os brancos são
importantes... E só quando a gente cresce e por livre e espontânea vontade quer
estudar e tomar partido nisso. É uma importância de identidade, de
representatividade, fora que a história do povo preto é muito rica, além do
sofrimento...
Em conjunto a isso,
recebemos respostas sobre o racismo e preconceito infiltrados em personagens
infantis. Como expõe esta resposta: “Eu acho muito importante a
representatividade afro na literatura, acredito que a literatura tem uma dívida
com a cultura afro, visto que, vários contos clássicos mostram características
racistas”. Outra resposta indica
um personagem como exemplo:
Um exemplo
importante do negro no universo infantil é o saci Pererê, retratado como
travesso pregador de peças, um sujeito nada confiável. E quando pesquisamos
sobre, encontramos um saci onde tudo que é feito de errado é atribuído a ele.
Quantas crianças tiveram na infância a representação do saci Pererê?
Estas duas respostas
explicitam a forma que o negro é apresentado na literatura e, quando se trata
de literatura infantil, se torna algo mais delicado, uma vez que as crianças
estão em formação de suas identidades.
Observamos, porém,
que pequena parcela das pessoas que respondeu a pergunta não sabe o que é
“representatividade” e, desse modo, não conseguiu formular uma resposta à
questão enviada. Isso para nós, também serve como resposta, pois,
“representação” é dar voz e direitos a todas as pessoas.
Reconhecemos que há
pessoas que sempre foram representadas, através da política, mídia, literatura,
história, etc. Estas acabam invisibilizando o conceito, não discutindo nem
argumentando sobre, inclusive no âmbito escolar, resultando na falta de consciência
sobre o tema.
A representação e
representatividade quando não é discutida, oportuniza abusos e injúrias. Por
isso, sua importância.
Finalizando
A partir desta
pequena pesquisa sobre a construção da identidade de crianças negras em
interface com a literatura na escola, buscamos refletir e argumentar sobre a
importância de tratar de assuntos como racismo, preconceito, representação,
entre outros, em sala de aula.
Entendemos que a
literatura por ser um instrumento fundamental nas escolas, deve abordar questões
sociais e que estão presentes na vida de todos, mas principalmente na vida de
pessoas negras.
Escolhemos esta data,
neste momento, para registrar que Vidas
Negras Importam, assim como suas historias e imagens. E estas vidas e
imagens devem ser representadas em todos os âmbitos. A escola, por fazer parte
de processos de construção de identidade, tem o dever de apresentar e
representar todas as diversidades.
Acreditamos, como
estudantes de Pedagogia, que a Literatura é um instrumento para, aos poucos,
irmos mudando a nossa sociedade.
MARIOSA, G. S. REIS, M. G. A
influência da literatura infantil afro-brasileira na construção da identidade
das crianças. Estação Literária. Londrina, Vagão vol 8 parte A, 2011.
SILVA, F. O. A representatividade do
negro na literatura infantil brasileira nas obras de Monteiro Lobato: "Os
doze trabalhos de Hércules - I", "Caçadas de Pedrinho" e
"Memórias de Emília". São Francisco do Conde, 2019.
SABINO, G. F. T. LORENÇO, L. G. O.
SILVA, D. B. Racismo e representatividade da criança negra na literatura
infantil: reflexões sobre o projeto de extensão e cultura "Construindo a
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https://monografias.brasilescola.uol.com.br/pedagogia/a-discriminacao-racial-seus-reflexos-no-processo-ensino.htm
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